Artigo sobre neuroprogressao (declínio cognitivo) no transtorno bipolar

Pacientes com Transtorno Bipolar (TB) geralmente apresentam déficits cognitivos com o envelhecimento. 

No entanto, a correlação entre TB e síndromes demenciais é inconclusiva, apesar da semelhança com a variante comportamental da demência frontotemporal. Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 78 anos, com transtorno bipolar tipo 1 desde a adolescência. Seus sintomas variavam de apatia a mania psicótica. 

Ela havia passado por três internações e, desde sua última internação, há 10 anos, seus sintomas permaneciam estáveis. Porém, nos últimos 2 anos, apresentou sintomas diversos, como irritabilidade manifestada como agressão verbal e física, comprometimento cognitivo, padrão repetitivo de comportamento, perambulação, delírios persecutórios, desorientação e hiporexia. 

O tratamento com anticolinesterásicos ou estabilizadores de humor não promoveu melhora. Ela obteve 17/30 pontos no Mini-Exame do Estado Mental. A avaliação neuropsicológica sugeriu déficits na função executiva, atenção e memória. 

Os exames de neuroimagem revelaram degeneração frontotemporal e hipoperfusão. As abordagens diagnósticas e terapêuticas para este tipo de paciente representam um desafio significativo para os médicos.

Palavras-chave: transtorno bipolar, demência frontotemporal, neuropsiquiatria geriátrica, neuroprogressão

O comprometimento cognitivo tem uma estreita relação com os transtornos mentais. Nesse cenário, o Transtorno Bipolar (TB) apresenta maior risco para o desenvolvimento de síndromes demenciais quando comparado a outras doenças clínicas.

Os comprometimentos cognitivos no curso do TB afetam principalmente a memória, a atenção, a linguagem e as funções executivas, mesmo durante a eutimia. estágio.

Apesar das semelhanças com a variante comportamental da demência frontotemporal (bvFTD), as tentativas de correlacionar TB com síndromes demenciais se mostraram inconclusivas.

Embora alguns estudos revelem estabilidade do comprometimento cognitivo, outros mostram comprometimento cognitivo e neuroprogressão para demência.

Vale ressaltar que dúvidas quanto à diferenciação entre o comprometimento cognitivo típico em pacientes idosos com transtorno bipolar I (BDI) e aquele observado em outras demências representam desafios diagnósticos e podem levar a falhas terapêuticas. 

Por exemplo, o uso de anticolinesterásicos em pacientes com BDI pode não ser apropriado, com alguns casos relatados de mudança maníaca. 

Nesse contexto, o presente estudo tem como objetivo descrever as observações de um paciente que apresentava claramente sintomas neuropsiquiátricos e a possibilidade de neuroprogressão no BDI. 

Com base neste relato, pretendemos tirar inferências neuropsicológicas e demonstrar a necessidade de uma melhor compreensão da evolução dos pacientes bipolares.

RELATO DE CASO

Mulher de 78 anos foi internada em clínica universitária com queixa de comprometimento cognitivo associado à deterioração funcional e piora de comportamento. Na admissão, apresentava-se totalmente dependente segundo a Escala de Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVD) de Lawton (0/9 pontos) 7 e semidependente segundo o índice de Katz de independência em Atividades de Vida Diária (AVD de Katz) (4/ 6), 8 necessitando de auxílio para banho e escovação dentária. A paciente recebeu 4 anos de escolaridade e foi diagnosticada com BDI aos 16 anos.

Ela recebeu galantamina 16 mg/dia por suspeita de doença de Alzheimer (DA). Apesar do tratamento, o paciente apresentou piora da hiporexia, agitação psicomotora e nenhuma melhora clinicamente significativa na cognição, comportamento ou funcionamento.

Ela teve três internações e os sintomas variaram de apatia à euforia com sintomas psicóticos. 

A última internação ocorreu 10 anos antes do encaminhamento. Após alta hospitalar, o paciente permaneceu em eutimia por 6 anos e foi tratado com oxcarbazepina na dose de 600 mg/dia, bromazepam 3 mg/dia e risperidona 1 mg/dia. 

Entretanto, o paciente relatou alterações neuropsiquiátricas progressivas nos últimos 2 anos com características diferentes, como impulsividade e irritabilidade manifestando-se como agressão verbal e física, perda de memória de curto prazo, padrão repetitivo de comportamento, perambulação, delírios persecutórios, desorientação e hiporexia. 

Apresentava também comprometimento ocupacional e perda de funcionalidade, obrigando-a a se afastar das atividades laborais.

A avaliação neuropsicológica revelou déficits de função executiva, linguagem, memória e atenção, com envolvimento considerável do lobo frontal.tabela 1). Em seus estudos recentes de neuroimagem, a ressonância magnética (RM) do cérebro mostrou atrofia cerebral com predominância frontotemporal e microangiopatia isquêmica incipiente (figura 1). 

A tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT) revelou hipoperfusão/ativação frontotemporal bilateral moderada a grave (Figura 2).

O paciente tinha um longo histórico de uso de medicamentos, que incluía carbonato de lítio, valproato de sódio, olanzapina, sertralina, escitalopram e trazodona. Apresentou hipertensão arterial sistêmica e hipotireoidismo. Ela não relatou história de alcoolismo, tabagismo ou uso de drogas ilícitas. 

Duas irmãs apresentavam transtornos psiquiátricos e a mãe apresentava síndrome demencial não especificada.

tabela 1

Resultados de testes neuropsicológicos.

Funções avaliadasMuito baixo (<3 SD)Baixo (-3 SD)Média Baixa (-2 SD)Média (± 1 DP)Média alta (+2 SD)Alto (+3 SD)Muito alto (>4 SD)
QIQI geral    
Atenção e Função ExecutivaAmplitude de atenção auditiva/verbal     
Memória de trabalho auditiva/verbal     
Cópia de desenhos alternados     
Organização Visuo-EspacialCópia de estímulo geométrico simples   
Desenho de figuras simples   
Desenho de relógio     
Cópia de figura em perspectiva     
LinguagemFluência verbal semântica     
Nomenclatura por confronto visual    
Compreender comandos verbais simples     
Pensamento verbal abstrato     
Funções VisuaisGnose visual   
Funções motorasMovimentos manuais alternativos     
MemóriaVerbalMemória episódica verbal imediata     
Memória episódica verbal atrasada     
Aprendizagem verbal orientada     
Aprendizagem verbal – recordação atrasada     
Reconhecimento verbal (Erros = 8)     
Memória associativa     
VisualMemória visual imediata     
Memória visual atrasada     

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figura 1

[A] Imagem por ressonância magnética (MRI)* [B] Imagem por ressonância magnética (MRI)**.

*A ressonância magnética axial do cérebro mostra atrofia cortical com predominância frontotemporal e intensidade de sinal anormal na substância branca, sugestiva de microangiopatia isquêmica incipiente.

**Cortes coronários mostram atrofia global com atrofia do hipocampo.

Um arquivo externo que contém uma imagem, ilustração, etc. O nome do objeto é 1980-5764-dn-13-04-0475-gf02.jpg

Figura 2

Tomografia Computadorizada por Emissão de Fóton Único (SPECT).

Imagem mostrando hipoperfusão/hipoativação moderada a grave em regiões dos córtices frontal e temporal bilaterais.

O exame clínico revelou sinais de parkinsonismo, agressividade, apatia, comprometimento da fala, humor deprimido e hipomimia facial. Na avaliação cognitiva, o paciente obteve 17/30 pontos no Miniexame do Estado Mental (MEEM) e 5 pontos no teste de fluência verbal na categoria animal. 

Os testes laboratoriais e sorológicos para triagem de demência secundária estavam todos dentro da normalidade. Além disso, foi excluído o diagnóstico de delirium com base em exames complementares e também considerando que a doença se caracteriza por sintomas agudos com evolução clínica flutuante.

Nesse contexto, levantamos a hipótese da presença de uma síndrome demencial não-Alzheimer com possível bvFTD ou comprometimento cognitivo como resultado da neuroprogressão no BDI. Optamos por suspender a galantamina, retirar a risperidona e continuar com quetiapina. 

Embora a paciente tenha evoluído com melhora parcial da agitação psicomotora, apresentou piora gradativa da apatia e da afasia, com perdas cognitivas/funcionais progressivas. O paciente faleceu 4 anos depois de complicações infecciosas pulmonares.

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DISCUSSÃO

Embora nosso paciente tenha apresentado perfil e evolução clínica semelhantes aos descritos na neuroprogressão no TB, 9 a associação com outras síndromes demenciais, especialmente bvFTD, não pôde ser excluída. Foi publicada uma revisão sistemática descrevendo o comprometimento cognitivo em pacientes bipolares, abordando especialmente o distúrbio da função executiva. 

Sugeriu que os pacientes bipolares apresentam capacidade de reserva cerebral reduzida, demonstrada pelo agravamento do comprometimento cognitivo ao longo da vida.

O tipo de comprometimento cognitivo observado em pacientes com TB pode ter apresentação clínica, neuropsicológica e de imagem que se assemelha à DFTvc. 

Observações clínicas relatam neuroprogressão para demência em pacientes com TB durante um período de 30 anos.

Alguns estudos recentes sugeriram uma associação etiopatogênica entre TB e uma síndrome demencial específica, semelhante à bvFTD.

No presente caso, observamos uma mudança nos padrões de comportamento do nosso paciente em relação aos sintomas apresentados anteriormente, mas ocorrendo em idade mais avançada. Essas alterações não responderam adequadamente ao uso de estabilizadores de humor ou anticolinesterásicos, evoluindo com piora comportamental e comprometimento cognitivo e funcional progressivo. 

Com base nos critérios diagnósticos atuais para DFTvc, e nas evidências que mostram que a idade tem pouca influência na psicopatologia maníaca,  é possível afirmar que nosso paciente apresentava provável DFTvc, embora entendamos que o TB poderia causar comprometimentos cognitivos subjacentes. 

Embora os pacientes bipolares apresentem um risco aumentado de comprometimento cognitivo associado a patologias relacionadas à idade, a demência de Alzheimer atípica não foi considerada como diagnóstico diferencial com base na piora comportamental inicial, na resposta terapêutica e nos achados de neuroimagem.

A literatura mostra impacto no funcionamento psicossocial desses pacientes principalmente devido ao estado de humor e à cognição, que pode permanecer mesmo após as fases agudas da doença.

Os fatores ligados ao TB que podem influenciar a cognição incluem número de episódios de humor ou psicóticos, hospitalizações, idade de início, duração da doença, polifarmácia e presença de comorbidade clínica. Nosso paciente tinha uma longa história de BDI, com internações psiquiátricas anteriores, sintomas psicóticos e uso de vários medicamentos psicotrópicos.

Pacientes idosos com TB apresentaram pior desempenho na velocidade psicomotora, atenção, memória, fluência verbal e funções executivas, bem como pior funcionamento psicossocial, independente do estado de humor atual ou dos efeitos iatrogênicos dos psicotrópicos. 

A avaliação neuropsicológica sugeriu um padrão de comprometimento que poderia estar presente tanto em pacientes com BDI quanto em síndromes demenciais. 

Assim, estabelecer um diagnóstico diferencial de DFTvc em um paciente bipolar torna-se um desafio, e não poderíamos descartar uma associação causal entre as duas entidades.

Há fracas evidências de que a atrofia cortical e as lesões vasculares da substância branca sejam mais comuns em idosos com TB do que em controles normais, onde permanece incerto se esse achado é atribuído ao processo psicopatológico ou a fatores secundários. 

Realizamos análise de neuroimagem para avaliar o diagnóstico diferencial, considerando que o paciente apresentava alterações comportamentais e cognitivas sugestivas de DFTvc. Em nosso paciente, estudos de neuroimagem funcional e estrutural revelaram sinais de hipofunção e atrofia da região frontotemporal, conforme demonstrado na literatura científica estabelecendo uma possível associação entre disfunção dos circuitos frontal e temporal e certos comprometimentos cognitivos.

Um estudo de acompanhamento estabeleceu uma associação entre gravidade do BDI, perda de memória e redução do volume de substância cinzenta no córtex temporal medial. 

Essa informação pode estar fortemente associada aos déficits frontais e sociais apresentados por indivíduos com TB. A hipótese vascular para os comprometimentos encontrados em nosso paciente seria menos provável dado o pequeno dano vascular subcortical observado, relativamente comum em pacientes dessa faixa etária.

Embora os sinais de déficits de memória tenham sido relatados como começando junto com o declínio funcional do paciente, não é incomum a discordância entre o início dos comprometimentos objetivos da memória e a observação dos sintomas por terceiros, geralmente porque esses indivíduos desconhecem as síndromes demenciais. 

Uma hipótese possível poderia ser a noção errada de que a perda de memória e o declínio funcional são uma parte inevitável do envelhecimento ou a recusa em aceitar um declínio nas capacidades funcionais de familiares com demência. 

Embora a memória só seja afetada em estágios mais avançados da DFT, o quadro inicial de apatia, irritabilidade e prejuízo no autocontrole, no autocuidado e na higiene corporal revelado por nosso paciente enquadra-se nas manifestações clínicas típicas dos pacientes com DFT. 

No caso da DFT, as alterações comportamentais tendem a ser mais proeminentes nas fases iniciais, com preservação das funções visuoespaciais, da orientação espacial e da memória, contrastando com alterações mais leves no comportamento, menos autonegligência e embotamento emocional, e um curso mais longo relacionado a uma possível demência distinta no TB.

O conceito de heterogeneidade clínica está presente em ambas as patologias, representando uma dificuldade no estabelecimento de critérios diagnósticos precisos, principalmente na DFTvc, cujos critérios têm sido objeto de discussão e propostas de revisão devido à ampliação do conhecimento funcional, genético e bioquímico. 

Hipóteses relacionadas à neuroprogressão e neurodegeneração podem justificar os prejuízos cognitivos apresentados pelos pacientes com TB, provavelmente devido a uma combinação de fatores genéticos precoces, fatores de risco ambientais, comorbidades médicas, efeitos iatrogênicos e o próprio envelhecimento. 

As reduções na densidade das células gliais demonstradas em estudos post-mortem em pacientes com TB revelam que seus cérebros podem ser mais vulneráveis ​​a insultos tóxicos, metabólicos e isquêmicos durante a vida adulta.

Diante das informações aqui apresentadas, é pertinente inferir a necessidade de novos estudos prospectivos, especialmente estudos de coorte associados à análise patológica post mortem envolvendo pacientes com BDI, para melhor esclarecer a plausibilidade biológica do comprometimento cognitivo, que pode ser uma entidade multifatorial com padrões de evolução diferentes daqueles observados no bvFTD. 

Outro aspecto importante é o estabelecimento de novos protocolos de avaliação neuropsicológica e de critérios de classificação nosológica com utilização de neuroimagem para elucidação diagnóstica.

Dr. Thiago Xavier Corrêa

Dr. Thiago Xavier Corrêa

Psiquiatra, Professor e Pesquisador Medicina UFMG | Mestrado UnB

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